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S’ambora!

By Antonio Nóbrega | 25 agosto 2016

Hoje, véspera da estreia do show “Semba”, que fica em cartaz desta sexta-feira, dia 26 de agosto até 04 de setembro no Teatro Paulo Autran — Sesc Pinheiros, compartilhamos com vocês o texto de Antonio Nóbrega que integra o programa do espetáculo, ilustrado por alguns registros fotográficos de Lenise Pinheiro, que acompanhou o processo do projeto “Do Semba ao Samba” desde 27 de julho.

“Não sabemos quando a palavra samba começou a circular. Uma data, todavia, marca o seu primeiro registro gráfico. Ela está no final de uma quadrinha escrita pelo frei Miguel do Sacramento Lopes Gama e impressa na revista O Carapuceiro, publicada em do dia três de fevereiro de 1836. É a seguinte:

Aqui pelo nosso mato,

que estava mui tatamba,

não se sabia outra coisa

que a dança do samba.

Embora já fizesse sucesso àquela época — como se deduz –, o samba ainda não era o samba com o qual geralmente o identificamos. Ainda não existia o samba… Samba!

Creio ser possível dividir a sua história em duas fases, apesar de ambas se fundirem. A primeira delas já se inaugura quando da chegada dos primeiros escravos traficados da Mãe África. Entre as práticas e costumes por eles trazidos estava o da umbigada, a semba — entrechoque da região umbilical entre pessoas de sexo oposto em certos momentos das danças rituais de casamento dos povos bantos. Desligada do antigo rito, a palavra semba entre nós transladou-se em samba, que veio, no geral, designar baile popular, cantoria, folguedo, etc. e, no particular, significar toda aquela manifestação de música e dança em que há cantos, tambores tocados com as mãos, palmeado, bate-pés, pessoas que dançam na disposição de uma roda dentro da qual uma dupla saracoteia, requebra, remexe e umbiga!

Pelo contínuo exercício e difusão dessa prática, foi se constituindo ao longo do tempo uma grande linhagem de manifestações que podemos denominar de família samba ou batuque. O Batuque de umbigada do interior paulista, o Samba de Roda baiano, o Samba de Parelha sergipano, o Coco nordestino, o Bambelô do Rio Grande do Norte, o Tambor de crioula maranhense, o Carimbó paraense, o Jongo fluminense, o Cateretê de Goiás, entre vários outros, fazem parte dessa extensa família.

Foram duas as causas através das quais ela se derramou pelo país. Uma delas foram os diversos ciclos econômicos — como cana de açúcar, mineração e café — ocorridos em diferentes épocas e regiões, que obrigaram obrigando o deslocamento da mão de obra escrava a cada vez que um deles expirava foi uma delas. A segunda, foi a presença de uma certa unidade cultural proporcionada pela extensa família banto desaguada no Brasil. A conjugação de ambas fizeram com que práticas semelhantes, mas não idênticas, na medida em que iam se encontrando uma com as outras, fossem gerando novos sotaques de sambas ou batuques.

Com a abolição da escravatura e derrocada do último dos grandes ciclos econômicos do país, o do café, um expressivo contingente de negros e mestiços de Minas e do Vale do Paraíba migra para a capital do país, Rio de Janeiro. A eles se unem outros da Bahia e de Pernambuco. Juntos, todos se fixam nas regiões centrais e portuária da cidade — Gamboa, Pedra do Sal, Saúde, Cidade Nova — e depois nos morros e nas suas encostas. É pelo entorno de algumas dessas regiões — a Pequena África chamada –, que irão proliferar as pensões ou casas de cômodos das famosas Tias baianas, e nelas as também famosas “sessões de samba”. E foi numa dessas sessões realizadas na casa da célebre Tia Ciata, que “nasceu” Pelo telefone, o “samba” que, registrado em novembro de 1916 na Biblioteca Nacional pelo compositor Donga, um dos frequentadores do local, fez o maior sucesso no carnaval de 1917.

O registro de Pelo telefone, em verdade, não marca o nascimento do samba mas, sem dúvida, demarca a época em que o gênero ganha os contornos da música e da dança com os quais se firmará no país.

Desta forma, síntese que fora de primordiais sambas e batuques, o nascente samba originará com o tempo novas variantes: samba-canção, samba-exaltação, samba de breque, samba-bossa nova…

Como se vê, uma história que continua e de tal riqueza sociocultural que me animou a idealizar e colocar em prática junto ao Sesc, o projeto Do Semba ao Samba, do qual este show Semba faz parte.

Posso elencar os motivos principais dessa empresa:

Um: face à invisibilidade por que culturalmente passa um certo e substancioso Brasil, tentar reavivar em nossa memória coletiva um pouco daquilo que somos e do que construímos por meio de uma de suas maiores expressões simbólicas talvez seja um bom tônico para auxiliar a reconstituição de nossa combalida autoestima coletiva;

Dois: a necessidade de relembrar que à margem do eixo civilizatório ocidental também há vida inteligente. Ou melhor, que existe um mundo novo que temos muita dificuldade em entender, aceitar, assimilar, acessar. O samba, apesar de toda sua majestade, é só uma ponta desse monumental aicebergue;

Três: escutar sambas como os de Ismael, Geraldo Pereira, Cartola, Nelson Cavaquinho, Noel, Chico, Paulinho da Viola e de tantos e tantos outros, é como frequentar um imenso orquidário de textos poéticos, ritmos, melodias por meio dos quais podemos aprender um pouco mais de nós e do mundo. Fazendo um trocadilho com o samba clássico de Paulinho da Viola que escutarão neste show, posso dizer que “as coisas estão no samba, só que precisamos aprender”;

Quase para fechar: o samba foi e ainda continua sendo um dos maiores porta-vozes das nossas dores, tristezas, asperezas e alegrias. Tem sido também uma altiva forma de denúncia das mazelas, desmandos e arbitrariedade de que sofre o povo brasileiro. Esse espírito, mais do que nunca, precisa ser reativado. No atual momento de nossa história, sobretudo política, esse é um dos meios de que disporíamos para gritar!.

Fora esses motivos, não sendo doente do pé nem ruim da cabeça — como todos, até certo ponto…, — cantar e dançar sambas me lava a alma!

Agradecendo ao Sesc pelo carinho, atenção e zelo profissional com que mais uma vez acolheu o nosso projeto e trabalho, convidamos, eu e a minha queridíssima turma de co-criadores e colaboradores, a nos acompanharem em mais uma jornada de regresso ao futuro.

S’ambora!

Antonio Nóbrega


Dos batuques primitivos ao gênero musical “samba”

By Antonio Nóbrega | 17 agosto 2016

Em 1916, com o registro na Biblioteca Nacional da composição Pelo Telefone pelo Donga, se formaliza o nascimento do gênero musical — embora que ainda imaturo — que marcaria de modo indelével o semblante cultural do país. O gênero, denominado de Samba, graças e sua divulgação a partir da capital federal pela nascente rádio, veio entranhar-se no corpo e espírito nacional de tal maneira a dar origem a um tão vivo quanto fecundo imaginário cultural.

O que não sabemos é que ao lado do “gênero” samba, muitas outras formas de samba, que ainda se derramam pelo país, não ganharam igualmente as suas “cartas de alforria”.

Antes da palavra samba “instituir” o gênero com o qual hoje o identificamos, o nome era sinônimo de batuque, festa, brincadeira, baile popular, cantoria, pagode, etc. Esses batuques, bailes ou sambas são conhecidos, e praticados, ainda hoje em várias regiões do Brasil pelos nomes de Coco de Zambê, Samba de parelha, Tambor de crioula, Jongo, Batuque paulista, Calango, Carimbó, entre outros. São manifestações de dança e música que guardam entre si inúmeras características comuns, entre elas, e principalmente, a umbigada, a punga, ou como era chamada pelos primeiros escravos trazidos para o Brasil, a semba, de onde, portanto, Samba.

O projeto “Do Semba ao Samba”, que estamos fazendo no Sesc Pinheiros, através do seu amplo leque de atividades, tem como objetivo não só apresentar a arte do samba via espetáculo e aulas-espetáculos, como também proporcionar conversas por meio de mesa de debates e a sua vivência corporal e musical, via oficinas e sambadas.

Confira aqui toda a programação e vem com a gente.

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Do Semba ao Samba é, também, um desejo de me tornar mais íntimo do meu País

By Antonio Nóbrega | 1 agosto 2016

Desde que comecei a idealizar este projeto, “Do Semba ao Samba”, que teve início no dia 27/07 e e se estende até 04/09 no Sesc Pinheiros, perguntam-me (e eu mesmo me pergunto) por que decidi fazer esta incursão em um ritmo/gênero sobre o qual ainda não havia me debruçado tão profundamente.

Uma das respostas é que não sendo “ruim da cabeça nem doente do pé”, além de procurar ser um bom sujeito… gosto bastante de samba. Uma outra é que todos nós cantores, compositores e letristas brasileiros em alguma fase da carreira, temos o nosso momento samba. E o meu chegou! Aproveitei o clarão das comemorações seu do centenário — não é a primeira vez que me aproveito dessa data — para armar não só um espetáculo, que chamarei de Semba, mas um ciclo de atividades ligadas ao mundo Samba. Depois, venho de um longo período de criação de espetáculos ligados à dança e quis voltar para a música — não estarei abandonando a dança –, um território onde me sinto muito bem, seja como cantor, instrumentista ou compositor. Ao realizar um espetáculo com recorte no samba eu me derramo em tudo isso. Além do que, ando estudando com muito afinco o que chamo de “a questão cultural brasileira”.

Em tempos temerários temos de procurar entender melhor o nosso País…Acho até que as pessoas em geral estão com necessidade de se aproximarem um pouco mais Dele. As coisas nesses últimos tempos ficaram bastante feias! E o samba representa uma extraordinária forma de nos aproximarmos do País pela sua essência. A impressão que tenho é que escutando Noel Rosa, Ismael Silva, Ataulfo, Caymmi, Paulinho da Viola, Adoniran, Chico e tantos outros, o Brasil volta a ficar mais perto de mim.

Concluindo, o que me leva a realizar esse projeto são tanto razões como essas que acabo de alinhar, como também um certo desejo semi-inconsciente de me tornar mais íntimo do meu país, de melhor percebê-lo por dentro, pelo miolo.

Confira aqui toda a programação e vem com a gente: http://bit.ly/AgendaSemba

 


Eu e Naná

By Antonio Nóbrega | 10 março 2016

Guardarei duas lembranças e uma música de Naná Vasconcelos para sempre: estou em Recife e recebo a notícia de que ele deixara a cidade para ir morar no Rio (depois deixaria o país); a outra: apresentando-me no show de abertura do carnaval de Recife em 2014, ano em que eu era o homenageado, recebo dele, que fora o do ano anterior, a placa da homenagem. Posso dizer que as duas lembranças fazem parte do lado imaterial, simbólico, afetivo que sempre guardarei de Naná; quanto à música, a carrego materialmente comigo. Ela é uma presença viva e quase constante no cotidiano exercício da minha dança. Sempre que quero fazer um passeio geral pela minha gramática corporal recorro àquela sua música de uma única e curta frase melódica, mas de ritmo forte e intenso com o mesmo poder de nos “agarrar” do Bolero de Ravel…

Vai-se um músico brasileiro. Um músico que para construir a sua obra — ganhadora de inúmeros prêmios e de honrosa fortuna crítica — teve de decantar um imaginário musical, sobretudo rítmico, que cada vez se nos foge, some, desaparece, melhor dizendo, cada vez mais é condenado à não-existência. Que outros termos poderemos usar para dar ideia da acachapante sobreposição, substituição ou apartaide imposto ao imaginário cultural brasileiro? Acompanhem-me: num curto espaço de tempo tivemos o Rock in Rio, Paul McCartney, os Rollings Stones; ainda para os próximos dias e semanas estão programados o Lollapalooza, o Iron Maiden, Cold play, festival Tomorrowland “Brasil” e por aí vai… Essas trupes aportam midiaticamente muito bem armadas. Chega a ser quase diabólica a engenharia e o poder de invenção de suas máquinas de divulgação. Os mais notórios jornais nacionais televisivos, revistas, jornais, rádios, redes sociais diuturnamente se revezam em noticiar suas apresentações.

E fato curioso: em tempos de crise lotam! Lotam. Li ontem que o preço do Lollapalooza para os dois dia é de R$ 800,00 contos! Lotam! Atentemos para o nome de algumas das poucas bandas “brasileiras” convocadas: Funky Fat, The Baggios, Dingo Bells… Não fosse essa invasão (há outra palavra?), e quase tudo que é tocado nos aeroportos, nas salas dos consultórios, nos programas das rádios, nas academias de esporte, nas trilhas das novelas, etc., de uma forma ou de outra, se intercomunica com esse imaginário. Ou seja o imaginário Brasil está sumindo do mapa e olhem que esse é o ano em que se comemora o centenário do samba. Alguém aí já ouviu os nosso grandes jornais, televisivos ou impressos cortejarem essa notícia? O samba vai dar em samba…Não assisto diariamente o programa de jornalismo das 22 h da Globo News, mas no mais das vezes que o vi, notei que ele é sempre finalizado com um clipe de alguma banda americana, inglesa ou assemelhada. Ei!? Nesse ano não poderia ser dada uma colherzinha de chá aos nossos grandes compositores de samba? Não há nenhum deles por aí que tenha pedigree para dar o ar de sua graça no programa?

A verdade é que estamos ficando cada vez culturalmente mais alienados. Parece que aspiramos em não ser o que somos. No mundo oficial da chamada música erudita coisa semelhante acontece. Pergunto: quantas orquestras sinfônicas subsidiadas pelo poder público ou empresarial existem no país? Talvez não fique longe de uma centena. Quantos grupos de choro ou de música instrumental à brasileira são subsidiados? Conheço alguns desses grupos, como a Orquestra Retratos (cordas dedilhadas) e a Spok Frevo orquestra, cuja qualidade inovadora dos seus trabalhos é inversamente proporcional aos subsídios que recebem — quando os conseguem via algum edital de cultura. Informo: isso não é xenofobia ou etnocentrismo às avessas de minha parte. Admiro muitíssimo a música de Stravinsqui, de Bach, de Mozart, acho um deleite escutar tanto sinfonias de Beethoven como canções de Bob Dylan, dos Beatles, etc. Mas o seguinte é esse: temos de ser bem mais a favor da música do Brasil, porque se não tivermos o zelo e cuidado que ela merece e precisa em breve desaparecerá, ou pelo menos muitas de suas qualidades.

Vai-se Naná Vasconcelos e com ele se apaga ainda mais um país que se esvai, que se contorce, que sangra… e que não consegue se repor. Não é simplesmente pelo fato de ser brasileiro que me determino a arrazoar do jeito que estou fazendo hoje aqui! Escrevo essas considerações porque percebo que o grande armazém, o nosso exuberante caldeirão de representações simbólico-populares — pulsos rítmicos, formas e gêneros poéticos, modos de atuação teatral, etc. e etc. — não é devidamente legitimado, reconhecido. É cada vez mais proscrito, isso sim! É uma lástima não conseguirmos dar ouvidos a pessoas como Mário de Andrade, Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, para citar alguns dentre os que já se foram, pensadores que se empenharam em entender e diagnosticar os nossos males e problemas culturais.

Não pensamos Brasil.

Será que nos contentaremos em ser eternamente o país da antropofagia (só se faz comer e não se digere, é…?), o país do carnaval, da geleia geral e do futebol que, felizmente, deixou de sê-lo?

Somos tão ocidentais quanto não o somos. Até o presente momento o mundo da cultura e civilização ocidental tem dado as cartas. Não é difícil constatar que esse sistema-mundo está longe de salvaguardar e preencher a totalidade das nossas necessidades humanas, sociais e culturais. Se o modelo ocidental fosse exemplar será que estaríamos onde nos encontramos? Não falo só do país, falo do planeta no seu todo, cujo modelo de civilização é sobretudo de base ocidental e androcêntrico.

No caso do nosso país a desproporção com que a nossa vertente cultural ocidental ou americanoeuropeia se sobrepõe à outra — índio-africana-ibérico-popular — é de atordoante violência. Esses dois mundos culturais precisam conversar de igual para igual. Não há saída. A arte é apenas um dos avatares desse processo.

Esse é o recado que há tempos Naná já havia me passado. Continuarei a escutá-lo e através de sua música a senti-lo. Com meu corpo.

Embalado por sua música danço como quem ri e quem chora.