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Eu e Naná

By Antonio Nóbrega | 10 março 2016 | Sem Comentários


Guardarei duas lembranças e uma música de Naná Vasconcelos para sempre: estou em Recife e recebo a notícia de que ele deixara a cidade para ir morar no Rio (depois deixaria o país); a outra: apresentando-me no show de abertura do carnaval de Recife em 2014, ano em que eu era o homenageado, recebo dele, que fora o do ano anterior, a placa da homenagem. Posso dizer que as duas lembranças fazem parte do lado imaterial, simbólico, afetivo que sempre guardarei de Naná; quanto à música, a carrego materialmente comigo. Ela é uma presença viva e quase constante no cotidiano exercício da minha dança. Sempre que quero fazer um passeio geral pela minha gramática corporal recorro àquela sua música de uma única e curta frase melódica, mas de ritmo forte e intenso com o mesmo poder de nos “agarrar” do Bolero de Ravel…

Vai-se um músico brasileiro. Um músico que para construir a sua obra — ganhadora de inúmeros prêmios e de honrosa fortuna crítica — teve de decantar um imaginário musical, sobretudo rítmico, que cada vez se nos foge, some, desaparece, melhor dizendo, cada vez mais é condenado à não-existência. Que outros termos poderemos usar para dar ideia da acachapante sobreposição, substituição ou apartaide imposto ao imaginário cultural brasileiro? Acompanhem-me: num curto espaço de tempo tivemos o Rock in Rio, Paul McCartney, os Rollings Stones; ainda para os próximos dias e semanas estão programados o Lollapalooza, o Iron Maiden, Cold play, festival Tomorrowland “Brasil” e por aí vai… Essas trupes aportam midiaticamente muito bem armadas. Chega a ser quase diabólica a engenharia e o poder de invenção de suas máquinas de divulgação. Os mais notórios jornais nacionais televisivos, revistas, jornais, rádios, redes sociais diuturnamente se revezam em noticiar suas apresentações.

E fato curioso: em tempos de crise lotam! Lotam. Li ontem que o preço do Lollapalooza para os dois dia é de R$ 800,00 contos! Lotam! Atentemos para o nome de algumas das poucas bandas “brasileiras” convocadas: Funky Fat, The Baggios, Dingo Bells… Não fosse essa invasão (há outra palavra?), e quase tudo que é tocado nos aeroportos, nas salas dos consultórios, nos programas das rádios, nas academias de esporte, nas trilhas das novelas, etc., de uma forma ou de outra, se intercomunica com esse imaginário. Ou seja o imaginário Brasil está sumindo do mapa e olhem que esse é o ano em que se comemora o centenário do samba. Alguém aí já ouviu os nosso grandes jornais, televisivos ou impressos cortejarem essa notícia? O samba vai dar em samba…Não assisto diariamente o programa de jornalismo das 22 h da Globo News, mas no mais das vezes que o vi, notei que ele é sempre finalizado com um clipe de alguma banda americana, inglesa ou assemelhada. Ei!? Nesse ano não poderia ser dada uma colherzinha de chá aos nossos grandes compositores de samba? Não há nenhum deles por aí que tenha pedigree para dar o ar de sua graça no programa?

A verdade é que estamos ficando cada vez culturalmente mais alienados. Parece que aspiramos em não ser o que somos. No mundo oficial da chamada música erudita coisa semelhante acontece. Pergunto: quantas orquestras sinfônicas subsidiadas pelo poder público ou empresarial existem no país? Talvez não fique longe de uma centena. Quantos grupos de choro ou de música instrumental à brasileira são subsidiados? Conheço alguns desses grupos, como a Orquestra Retratos (cordas dedilhadas) e a Spok Frevo orquestra, cuja qualidade inovadora dos seus trabalhos é inversamente proporcional aos subsídios que recebem — quando os conseguem via algum edital de cultura. Informo: isso não é xenofobia ou etnocentrismo às avessas de minha parte. Admiro muitíssimo a música de Stravinsqui, de Bach, de Mozart, acho um deleite escutar tanto sinfonias de Beethoven como canções de Bob Dylan, dos Beatles, etc. Mas o seguinte é esse: temos de ser bem mais a favor da música do Brasil, porque se não tivermos o zelo e cuidado que ela merece e precisa em breve desaparecerá, ou pelo menos muitas de suas qualidades.

Vai-se Naná Vasconcelos e com ele se apaga ainda mais um país que se esvai, que se contorce, que sangra… e que não consegue se repor. Não é simplesmente pelo fato de ser brasileiro que me determino a arrazoar do jeito que estou fazendo hoje aqui! Escrevo essas considerações porque percebo que o grande armazém, o nosso exuberante caldeirão de representações simbólico-populares — pulsos rítmicos, formas e gêneros poéticos, modos de atuação teatral, etc. e etc. — não é devidamente legitimado, reconhecido. É cada vez mais proscrito, isso sim! É uma lástima não conseguirmos dar ouvidos a pessoas como Mário de Andrade, Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, para citar alguns dentre os que já se foram, pensadores que se empenharam em entender e diagnosticar os nossos males e problemas culturais.

Não pensamos Brasil.

Será que nos contentaremos em ser eternamente o país da antropofagia (só se faz comer e não se digere, é…?), o país do carnaval, da geleia geral e do futebol que, felizmente, deixou de sê-lo?

Somos tão ocidentais quanto não o somos. Até o presente momento o mundo da cultura e civilização ocidental tem dado as cartas. Não é difícil constatar que esse sistema-mundo está longe de salvaguardar e preencher a totalidade das nossas necessidades humanas, sociais e culturais. Se o modelo ocidental fosse exemplar será que estaríamos onde nos encontramos? Não falo só do país, falo do planeta no seu todo, cujo modelo de civilização é sobretudo de base ocidental e androcêntrico.

No caso do nosso país a desproporção com que a nossa vertente cultural ocidental ou americanoeuropeia se sobrepõe à outra — índio-africana-ibérico-popular — é de atordoante violência. Esses dois mundos culturais precisam conversar de igual para igual. Não há saída. A arte é apenas um dos avatares desse processo.

Esse é o recado que há tempos Naná já havia me passado. Continuarei a escutá-lo e através de sua música a senti-lo. Com meu corpo.

Embalado por sua música danço como quem ri e quem chora.