Eu, o Mateus e o Quinteto Armorial

By Antonio Nóbrega | 12 setembro 2017 | Sem Comentários

Foi no fim de tarde de um domingo na Casa de Cultura de Recife, assistindo pela primeira vez uma apresentação de um Bumba-meu-boi e acompanhando deslumbrado a movimentação da figura de um Mateus, que despertei para dança. Aquela burlesca personagem teatral vestida com calça e camisa de chita, de pés descalços, segurando uma espécie de bastão ou baliza com fitas multicores amarradas numa das suas extremidades, dançando, gesticulando, faceciando, mugangando, galhofando ali bem à minha frente, me deixava completamente aturdido, desconcertado, hipnotizado…e com uma incontrolável vontade de fazer aquilo que ele fazia…

Tinha 19 anos nessa ocasião e alguns meses atrás havia sido convidado por Ariano Suassuna para integrar o Quinteto Armorial. Ariano me assistira tocando o concerto de Mi M de Bach para violino numa apresentação que fizera na Igreja de São Pedro dos Clérigos, local de habituais concertos na cidade, e achara que eu era a pessoa talhada para o posto. Ora, quem seria eu para negar-lhe tal convicção?…

Só alguns anos depois é que compreendi que aquele convite representara a senha, o passaporte de entrada para um mundo, até àquela época, inteiramente desconhecido para mim. Esse convite mudaria lenta e indelevelmente não só o meu modo de praticar e fazer arte, como a minha maneira de ver e pensar o Brasil e o mundo.

Àquela ocasião fazia o primeiro ano do curso de Direito e mantinha estudos formais de música e violino, mas, nem me sentia especialmente vocacionado para as lides jurídicas, nem tampouco achava que dedicar 5, 6 horas de estudo por dia ao violino seria uma atividade que preenchesse integralmente a minha curiosidade e interesses artísticos. Gostava imensamente de ler e escrever e idealizava fazer diplomacia…. Portanto, aquele convite vinha em boa hora.

O primeiro ensaio do Quinteto aconteceu na casa de Ariano. Ali, na sala de visitas de sua casa, no bairro de Casa Forte em Recife, dispusemos nossas estantes de música, colocamos a partitura da música Repente do Antonio José Madureira e, lentamente, sob olhar curioso e atento de Ariano, começamos a tentar traduzir em sons o que aquelas folhas de papel nos indicava. Durante vários anos repetiríamos esse rito. Ali nos encontraríamos para ensaiar as músicas compostas para o grupo por Antonio José Madureira – quem dirigia o Quinteto e seu principal compositor – Generino Luna, Jarbas Maciel, Capiba, Egydio Vieira e por mim. Em verdade, o grupo nasceu como um quarteto formado por uma viola dedilhada, executada pelo Madureira; um violão, pelo Edilson Eulálio; uma flauta, inicialmente tocada pelo Generino Luna e depois sucessivamente pelo Guebinha – José Tavares de Amorim –, Egydio Vieira e, por ultimo, Antonio Fernandes de Farias, vulgo “Pintassilgo”; eu alternava a execução do violino tradicional com a sua versão popular, a rabeca. Não demoraria muito para que um quinto instrumento, o Marimbau, entrasse em cena. Para quem não o conhece trata-se de uma versão um pouco mais completa do que o Berimbau, pois enquanto esse é basicamente um instrumento rítmico – muito embora instaure um campo harmônico quando tocado, em virtude das duas notas, geralmente intervaladas numa segunda maior, tiradas da corda de aço por meio da movimentação da moeda sobre ela – o marimbau permite a execução de uma escala diatônica completa. Não precisarei descrevê-lo, a foto anexa irá fazê-lo melhor que eu.

(…)

Antonio Nóbrega

O texto “Eu e as Danças Populares” compõe o livro Com Passo Sincopado – Em busca de uma linguagem brasileira de dança de Antonio Nóbrega. Conheça o projeto contemplado pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2014: http://bit.ly/PassoSincopado





Numa Asa Delta

By Antonio Nóbrega | 11 agosto 2017 | Sem Comentários

“E se me fatiga bastante, pela sua precariedade contemporânea, afirmar que o povo brasileiro é formado das três correntes: portuguesa, africana e ameríndia, sempre é comovente verificar que apenas essas três bases étnicas o povo celebra secularmente em suas danças dramáticas”.

Mário de Andrade. In Danças Dramáticas do Brasil

Imagine-se, leitor, numa manhã ensolarada, radiante, planando numa asa delta. Imagine, ainda, que repentinamente descortinasse um imenso vale onde no leito de suas encostas avistasse, movendo-se quase imperceptivelmente, um longo e caudaloso tapete marcado por indiscerníveis pontos coloridos e faiscantes…

Suponhamos que essa visão o deslumbrasse de tal jeito que, tomado pela curiosidade, baixasse a altitude do “aeroplano” e descobrisse que aquele curioso coruscante cardume movimentando-se correspondia a milhares de pessoas caminhando em compassivo cortejo. Intensamente atraído, resolvesse baixar ainda mais seu planador e percebesse que os integrantes do caudaloso cortejo trajavam luzidias e multicores vestimentas, dos mais diversos formatos, alindadas por uma miríade de adereços. Uns vestiam saiotes de cetim e de ganga adornados por barras de espiguilhas douradas; outros envergavam guarda-peitos acetinados, cobertos de espelhos e debruados de galões prateados; outros mais usavam saias brancas rendadas; alguns portavam mantos-gola com desenhos de florais e pássaros bordados à canutilhos e miçangas; vários encabeçavam chapéu com a aba frontal, “batida”, revestida de pequenos pedaços de espelhos e flores de ouropel, enquanto da aba de trás, estirada, pendiam fitas de variadas e brilhantes cores; alguns mais ostentavam sobre a cabeça simulacros de templos e pagodes orientais profusamente ornados de espelhos, papéis brilhantes e pedrinhas de aljôfar; vários deles, de rostos tisnados de carvão e encabeçando chapéus-cafuringa,  empunhavam bexigas infladas e corriam de um lado para o outro as esbordoando em si e nos demais; centenas deles tocavam tambores, caracaxás, gonguês, pandeiros, cavaquinhos, violas, violinos, clarinetas, saxofones, pifes, flautas, acordeons e inúmeros outros instrumentos.

Imagine ainda, leitor, que querendo decifrar o sentido daquela movimentação, da algaravia dos trajes, buscando entender a mixórdia sonora que quase inaudível lhe chegava, se decidisse dar largas à irrefreável curiosidade e estacionasse sua asa delta na extremidade do vale, para onde se dirigia o cortejo, e, assim bem de pertinho, poder melhor perceber o que cantavam, dançavam e tocavam aqueles “festeiros”.

Seria então nesse momento, caro leitor, que perceberia que todo aquele imenso cortejo correspondia à reunião de centenas de grupos de pessoas que trajando cada qual vestimentas comuns, se locomoviam cantando, tocando, saltando, girando, requebrando, saracoteando, mogangando, gingando, volteando em meio a traçados e manobras coreográficas que iam desenhando pelo gramado do vale enquanto deambulavam.

Caminhando ao encontro do imenso préstito e aproximando-se das encostas do vale, o leitor amigo e corajoso, perceberia também que o som que emanava dos tambores, dos demais instrumentos e das vozes ecoava por toda a região e que, à medida que o cortejo se aproximava, o volume sonoro recrudescia perigosamente.… Não tardaria e o meu amigo teria de escolher entre evadir-se ou se entregar à festiva comitiva!

Se ele for como eu, deixará ser arrastado, conduzido e acicatado pela sincopada pulsação rítmica dos tambores, taróis, ganzás, pandeiros e a prodigalidade dos cantos; sairá “da sua” e entrará, pulando, cantando, brincando e chorando “na de todos aqueles outros”, o território sensorial e emotivo onde se encontravam imersos, naquela manhã   ensolarada e radiante, numa férica comunhão com o espírito da festa, da alegria e do congraçamento humano, aqueles homens e mulheres.

 

Em São Cristóvão

O mês é o de Janeiro e o ano, se bem me recordo, é o de 1980. Agora sou eu quem estou sob a guarda de uma manhã, também tinindo de brilhosa, no meio de uma das ruas centrais da cidade de São Cristóvão, na rabeira de um grupo de Bacamarteiros. A música é marcadamente percussiva, vexada, de ritmo bem soletrado, contínua e cantada à toda garganta e pulmões por homens e mulheres em idades diversas que caminham dançando, saltitando e portando à tiracolo – não todos – bacamartes. Atrás de mim, numa movimentação menos agitada, mais ondulada e compassada, integrantes de um grupo de São Gonçalo “tiram” loas, toadas e tocam violas, cavaquinhos e leve percussão. Para além desses dois grupos, para onde o meu olhar se dirige encontra músicos, dançarinos, cantadores, personagens e figuras teatrais das mais variadas espécies e natureza – reis, rainhas, bois, “mortos-carregando-os-vivos”, burrinhas, catirinas, cazumbás, caboclinhos, etc.

O Festival Folclórico de São Cristóvão era um daqueles eventos anuais – com alguma frequência eventos semelhantes aconteciam também em outras cidades brasileiras – que reuniam uma infinidade de grupos “folclóricos” de várias regiões do país. Lá estariam muitos daqueles que o meu hipotético leitor-planador terá visto em seu imaginário passeio aéreo…

Foi numa dessas ocasiões, que percebendo – mesmo com o pouco siso que me sobrava em tais circunstâncias, ou por isso mesmo – a diversidade e unidade de procedimentos, formas, conteúdos e estruturas que subjaziam no interior daquelas manifestações, que dei corda a mim mesmo na empreitada de buscar entender como elas se constituíram. Dizendo de outro modo: foi dentro daquele redemoinho dionisíaco que me impus a tarefe de tentar “desenredar” os caminhos através dos quais tais manifestações vieram a se tornar o que eram!

 

Por onde começar?

Foi sem abdicar de continuar a bater canela por terreiros, sedes de agremiações, treinos, sambadas e apresentações de grupos populares que encetei comigo mesmo a tarefa de também me abancar em gabinete.

Atinei que, passados já vários anos assimilando cantos, danças, histórias, formas poéticas, maneiras de tocar instrumentos musicais e modos de “brincar” dos mestres, dançadores e brincantes populares; lendo e continuamente adquirindo livros sobre o mundo popular, chegara o momento de tentar responder a questões que adensando cada vez mais o meu portfólio interior me martelavam o juízo. Seria o mundo popular tão caótico quanto aparentava, ou nós é que não o compreendíamos? Porque as “brincadeiras” populares que assistia e praticava me davam a impressão de serem tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes? E se assim fosse, eu saberia identificar e separar as diferenças das semelhanças? Por que a figura do Boi estava presente nos folguedos amazônicos, nos nordestinos, nos sulinos, em todas as regiões do Brasil? De onde provinha tudo isso? Como se formara um Reisado, um grupo de Caboclinhos? Haveria algum cordão, uma linha histórica por meio da qual eu poderia estabelecer uma ligação entre as várias manifestações populares entre si? Como se formatara esse imaginário? De que maneira ele teria se internalizado na psique coletiva do povo? Teria? E sendo afirmativa a resposta, quais os desdobramentos dessa internalização? Haveria?

Acompanhando a movimentação dos Caboclos de Lança de um maracatu rural, me perguntava: “Quais os caminhos que teriam levado a se ‘formatar’ àquelas portentosas figuras que incorporadas por trabalhadores rurais – vestindo pesadas golas-mantos a estampar desenhos de flores, animais, arabescos e espirais bordados à miçangas, canutilhos e lantejoulas; sustentando sobre os ombros matulão do qual pendiam 4, 5, 6 ou mais badalos de metal; maneando e volteando para cima, para baixo, para os lados  uma enorme lança de quase dois metros inteiramente ataviada de fitas; portando sobre a cabeça um imenso “chapéu” adornado por milhares de tiras de papel celofane ou laminado; – dançando, pulando, saltando, caminhando jornadeiam pelas ruas de Recife e de cidades da zona da mata pernambucana durante os dias de carnaval? Que representam?

Onde estaria o fulcro histórico por onde tudo isso estava se passando? Porque o conhecemos tão mal e de modo tão apartado do conjunto de nossa história cultural? Assim como, lendo e estudando obras dedicadas à trajetória da cultura ocidental podemos tomar conhecimento em sua totalidade dos caminhos percorridos pela sua literatura, música, pintura, etc., julgo que deveríamos igualmente, em relação à nossa história cultural, poder acessar uma narrativa que levasse em conta as duas grandes vertentes que a constituem: a popular, de prevalente extração índio-africano-ibericopopular e a ocidental ou europeia de base greco-latina-judaico-bárbaro-cristã.

Antonio Nóbrega

 

O texto “Numa Asa Delta” compõe o livro Com Passo Sincopado – Em busca de uma linguagem brasileira de dança de Antonio Nóbrega. Conheça o projeto contemplado pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2014: http://bit.ly/2hiAaco