Blog


O Cavaleiro da Alegre Figura

By Antonio Nóbrega | 24 julho 2014 | Sem Comentários

Conheci Ariano em 1970 quando fui convidado por ele a integrar o Quinteto armorial. Na ocasião ele acabara de publicar o seu livro, o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta, e foi por meio dessa obra que adentrei no Mundo Ariano. Minha ligação com Ariano foi imensamente frutífera: anos de convivência quase que cotidiana durante a fase de apresentações do Quinteto; musiquei alguns de seus poemas, representei o personagem Joaquim Simão da sua peça A Farsa da Boa Preguiça numa versão realizada pela TV Globo; inspirei-me em seus “amarelinhos” para construir o meu personagem Tonheta…E sobretudo isso: foi a partir do meu encontro com ele que minha maneira de fazer arte, entender cultura e ver o mundo ganharam outras e novas dimensões.

Ariano teve, continuará tendo, um papel absolutamente imprescindível, vital para a arte e cultura brasileiras. Foi escritor versátil – dramaturgo, romancista, poeta, cronista, ensaísta – e um misto de empreendedor, ativista e animador cultural. Todas essas suas atividades tiveram como pano de fundo a sua visceral paixão pelo povo e pela cultura brasileira, uma tão intensa amorosidade só comparável àquela de brasileiros como Mário de Andrade e Darcy Ribeiro.

Ariano há muito que vinha escrevendo o que, segundo ele, seria a sua obra síntese. Esse livro tive a oportunidade de “escutá-lo” inúmeras vezes quando o visitava. Ariano tinha um enorme prazer em ler trechos dele para nós, amigos que o visitávamos. Por alguma razão desconfiava que essa sua obra não seria publicada em vida…

O Cavaleiro da Alegre Figura ainda terá muito a nos revelar. Uma vida desse tamanho e quilate não se extingue com a morte. Como ele dizia, em tom de brincadeira, referindo-se à sua entrada na Academia Brasileira de Letras: “não quero ser um imortal, quero ser imorrível”.

O Cavaleiro da Alegre Figura tem e continuará a ter uma permanente Cadeira na grande Arena da vida.

A. Nobrega





Brincante ameaçado por especulação imobiliária

By Antonio Nóbrega | 15 julho 2014 | Sem Comentários

fachada_antiga2

1992: Nóbrega e a atriz e dançarina Rosane Almeida no ano de fundação

 

O Instituto Brincante, local de cursos, apresentação de espetáculos e centro de estudos e pesquisas da arte e cultura brasileira que há 22 anos ocupa um espaço de 800 m2 na Vila Madalena, segue com a manutenção de suas atividades ameaçada. Seus fundadores — o músico, dançarino e pesquisador Antonio Nóbrega e sua mulher, a atriz e dançarina Rosane Almeida — receberam em 20 de maio uma notificação pedindo a desocupação do imóvel em 30 dias, a contar daquela data, sob pena de ajuizamento de ação de despejo. A informação é a de que o terreno estaria vendido para uma incorporadora.

O casal, que desde então tenta judicialmente permanecer no local, obteve uma importante conquista: no dia 30/09, o Instituto Brincante foi considerado patrimônio imaterial pelo Conpresp, o órgão municipal de preservação do patrimônio histórico, cultural e ambiental. As atividades seguem normalmente enquanto não há decisão judicial definitiva sobre o imóvel. 

A publicação da notícia no portal Catraca Livre, ainda no dia 8 de julho, provocou grande repercussão entre professores, alunos, parceiros e admiradores do Brincante, que logo saíram em defesa da manutenção do espaço cultural no local pelas redes sociais (com a hashtag #ficabrincante). Rapidamente, começaram a surgir ações no sentido de chamar a atenção para o caso e mobilizar a maior quantidade de pessoas. Desde alunos que criaram uma página no Facebook (https://www.facebook.com/ficabrincante), passando por fotos de apoiadores Brasil afora com a menssagem #ficabrincante ao show #ficabrincante no Parque do Ibirapuera, no dia 03/08, quando se formou uma ciranda de 10 mil pessoas.

O Instituto Alana, por exemplo, produziu vídeos que têm auxiliado na mobilização, como um em que Rosane questiona qual o lugar da cultura na cidade? (em meio a especulação imobiliária e o seu poder econômico). Tanto Rosane como Nóbrega têm se manifestado e pedido apoio por meio de suas contas no Facebook e da página do Brincante na rede social.

 

Sobre a disputa imobiliária

A advogada Renata Maluf, que representa o Brincante, explica que o proprietário do imóvel não cumpriu com a obrigação legal de garantir o direito de preferência de venda para o centro cultural. “A relação entre as partes é de mais de 20 anos e nunca houve contratos sucessivos com prazos estipulados. Mas o fato de a locação estar vigorando por prazo indeterminado não afasta o direito de preferência do inquilino”, diz.

Segundo ela, não cabe qualquer distribuição de ação de despejo, como ameaçou a notificação recebida pelo Brincante, uma vez que o locador não ofertou o imóvel para os locatários. Até porque, em outras ocasiões, o casal de artistas já havia manifestado ao proprietário seu interesse em fazer uma proposta para adquirir o bem.

 

Números do Brincante

Localizado na Rua Purpurina, 428, na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, o Brincante foi fundado pelo casal de artistas Antonio Nóbrega e Rosane Almeida em 22 de novembro de 1992. Tornou-se Ponto de Cultura em 2004 e adquiriu o status de instituto em 2 de março de 2001. Ao longo de mais de duas décadas, acumula números expressivos no trabalho de promoção da cultura brasileira. Confira*:

– Atendeu diretamente mais de 20 mil alunos
– Reuniu um público de mais de 57 mil pessoas
– Realizou mais de 70 espetáculos
– Realizou 5 festivais (Encontro com a Dança e a Música Brasileiras, Sete anos a caminho dos 500, Festejando Câmara Cascudo
– Na passagem de seu nascimento, Ao Gosto das Artes, 1º Festival de Brincantes, Festival Brincante 20 anos) e 8 sambadas
– Atendeu mais de 30 instituições (por meio de cursos, oficinas, palestras e espetáculos)
– Formou 2,2 mil educadores
– O Brincante Itinerante (fundado em 2011) atendeu mais de 3 mil pessoas

* Dados até o primeiro semestre de 2014





A melancolia que pode nos animar

By Antonio Nóbrega | 13 julho 2014 | Sem Comentários

As nossas sucessivas derrotas nos jogos da Copa – como coroação de sua desastrada preparação e campanha – está oferecendo ao país, a nós brasileiros, a rica oportunidade de refletirmos sobre que tipo de nação queremos continuar construindo. O nosso futebol reflete à medida o nosso processo de desorientação interna – cultural, sobretudo: não jogamos um futebol nem pragmático, técnico, “simétrico” e muito menos um outro festivo, firulado, gingado, “curvilíneo”. E esse não é um problema só do futebol; o jogo, a brincadeira do futebol, é apenas a representação em microcosmo – ou macrocosmo? – dessa questão maior: o que somos e o que queremos ser?

A minha resposta é que precisamos urgentemente congraçar essas duas categorias de procedimentos – unidas no atual momento de nossa história de modo completamente desordenado, quase caótico – e que só conseguiremos “ser” realmente, quando conseguirmos construir em nós – e em consequência no país – um lugar onde essas duas instâncias não se oponham, mas pelo contrário, se complementem, se confraternizem, se “respirem”, harmoniosamente, em plenitude. Essa má campanha da Copa, e as consequentes derrotas, estão nos oferecendo, com a dor do espírito e da carne, a oportunidade de refletirmos à exaustão sobre aquilo que queremos para nós.

A nossa “empreitada” é áspera, tão áspera quanto seria para qualquer nação que se preze e que queira dar o ar de sua graça no melhor de si mesma. Que essa melancolia nos anime. Que ela nos ajude “planejar” uma utopia realizável: a de conjugarmos beleza e verdade, poesia e trabalho, ginga e determinação. O nosso naufrágio na Copa nos dá de bandeja essa oportunidade de pensar e agir. Benvinda melancolia.





Abertura da copa – um desastre cultural

By Antonio Nóbrega | 13 junho 2014 | Sem Comentários

Constrangedora, essa é a palavra que me acode para dar nome ao espetáculo de abertura da Copa a que todos assistimos ontem à tarde. Deslizamos em tantos quesitos nessa Copa que, pensei, esse seria um daqueles que poderia nos redimir…

Constrangimento pelo inexpressivo, escolar, vazio espetáculo de abertura. Fosse para trazer o Brasil popular para a abertura, que lá estivessem uma das nossas boas Escolas de Samba do Rio ou São Paulo, um grupo de Caboclos-de-lança dos Maracatus pernambucanos, um cortejo de Caboclinhos, uma Congada… seriam muito mais impactantes e verdadeiros.

Constrangimento pela falta de educação de nossa classe média escolarizada – aquela que pode comprar ingresso para o jogo – que trocou liberdade de expressão por ausência de educação elementar. As eleições estão já por aí, essa é a ocasião de manifestar com a veemência do voto, e não com a do palavrão, a insatisfação.

Constrangimento pelo minguado tempo (seis segundos) dado à imagem do tetraplégico chutando a bola, revelando com esse simbólico gesto as esperançosas conquistas científicas brasileiras através do trabalho Dr. Nicolelis e sua equipe.

Constrangimento final: uma canção gringa em pleibeque cantada por Cláudia Leite, Jennifer Lopes e Pitbull, pastiches de si próprios, formatada num midiático e estereotipado lugar comum!

Trinta minutos jogados fora. Trinta minutos que poderiam ter servido para bem nos apresentar ao mundo!

Um constrangedor desastre cultural, enfim. Resta-nos a esperança de que o bom futebol, já apresentado, venha nos redimir de tamanho equívoco!





Inauguração do Paço do Frevo

By Antonio Nóbrega | 17 fevereiro 2014 | Sem Comentários

Amigos queridos, compartilho com vocês o texto que escrevi para a inauguração, em Recife, do Paço do Frevo.

Paço do Frevo – Apresentação from Luis Marcelo Mendes on Vimeo.

“Fico agradecido ao senhor prefeito Geraldo Júlio pelo convite que me fez para proferir algumas palavras nesse evento de inauguração do Paço do Frevo. Com esse convite renovo o meu agradecimento a ele e à secretária de cultura municipal, Leda Alves, pela distinção de ser, juntamente com Frevo, o homenageado do Carnaval de 2014. Me permitam dizer que foi uma honraria que considerei tanto individual quanto coletivamente, porque ao recebê-la é como se estivessem comigo, bem aqui meu lado, aquela imensa legião de compositores, passistas, músicos e cantores que tanto admiro e que desde o alvorecer do século XX até os dias de hoje, vieram decantando e dando forma ao que entendemos e chamamos de frevo.
Uma outra razão para ainda agradecer-lhe o convite é ter a oportunidade de, publicamente e segundo o meu ponto de vista, reforçar o significado e a responsabilidade dessa inauguração. Digo sempre que o frevo transcende os limites de uma simples manifestação cultural. Prefiro denominá-lo de uma instituição cultural. Não preciso repetir aqui as formas ou gêneros em que essa instituição se dinamiza. Mas aquilo que talvez necessite ser lembrado é que a teia, a rede, a urdidura e cruzamento do material simbólico que lhe deu origem e fundamento – ritmos, danças, cantos que se perdem pelas Idades do mundo – se confunde com a própria história do Brasil. Uma história que se desenvolve dentro do Brasil periférico, pobre, marginal, mal compreendido e culturalmente folclorizado. Ouvimos muitas vezes dizer que o Brasil é uma soma de vários Brasis. Me permitam ainda, discordar dessa opinião pois penso que o que chamamos de Brasil não é mais do que a reunião de apenas dois e únicos Brasis: o do primeiro andar e o do andar de baixo ou do sótão! Há historicamente um Brasil socioeconômico e cultural subalternizado e foi esse Brasil que, prevalentemente, nos deu samba, baião, choro e o frevo, para só me referir à algumas manifestações da cultura imaterial. Esses gêneros ou manifestações culturais foram se constituindo, repito, no subsolo, a despeito de toda força contrária, fundamentalmente por negros, índios, mulatos e ibéricos não pertencentes à classe hegemônica e dominante. Para que essas preciosas manifestações ganhassem corpo e alma uma monumental inteligência e energia criadora intuitiva e inconscientemente foi mobilizada. Está na hora de descobrirmos que força é essa. De onde ela provém. Entendermos o seu poder transformador e revolucionário. Que força é essa que tão voluptuosamente se despeja na hora de bater um tambor, de cantar, de tocar, de dançar e brincar? Essa Casa – esse Paço do frevo – tem de compreender de onde ela vem, de saber canalizá-la, essa Casa tem de ser a usina e represa dessa grande hidroelétrica frevo. Ela tem de ser o dinâmico e transcendente reflexo dessa força. Penso que ao compreendê-la teremos em mãos um rico e fecundo caminho para vencermos vários de nossos desafios, e que não dizem respeito unicamente à arte e cultura.
Senhores: podemos transformar esse espaço, esse Paço num local exemplar de Brasil. Um lugar não só de busca, pesquisa, prática e experimentação artística, mas, sobretudo um território de vivência de novas práticas de relações, procedimentos e integração humanas. Além do frevo-de-rua, da dança do frevo, do frevo-canção e do frevo-de-bloco o oceano frevo tem um mar de rios para colaborar no desenvolvimento de nossa humana imaterial e material educação. Educação eis uma palavra chave. Se tivermos a suficiente compreensão do significado e alcance sociocultural dessa grande Instituição Frevo poderemos transmudar sua imaterialidade em matéria viva e operante dignificando a sua alegre, bela e explosiva humanidade.” Sugiro que acessem o site do Paço do Frevo para conhecer mais sobre o museu.





Nascimento do Brincante VII: Tonheta e o velho Faceta

By Antonio Nóbrega | 6 janeiro 2014 | Sem Comentários

Estreamos o espetáculo Brincante em março de 1992 no I Festival de Teatro de Curitiba. Entre a jornada Dimitri e essa estreia já tinham se passado seis anos. Ao longo desse período fui procurando organizar as ideias do espetáculo que teria como coração a figura de Tonheta, personagem que há muito vinha pulsando e se desenhando dentro de mim.
Vale a pena discorrer um pouco sobre a razão desse nome para o meu personagem. Em Recife, onde, como se diz, nasci e me criei, um Antonio, normalmente, desemboca em Toinho, assim como, em São Paulo, em Toninho. Pois bem, esse Toinho que aqui vos escreve, tinha o hábito de frequentar as apresentações do Pastoril do Velho Faceta, realizadas pelo verão no Janga, localidade praiana pernambucana do litoral norte a que se chega depois de atravessar toda a cidade de Olinda. Para quem não conhece, o Pastoril é um dos espetáculos populares nordestinos presentes no ciclo natalino, acontecendo suas apresentações de meados de dezembro até o dia seis de janeiro, dia de Reis. De origem portuguesa, é constituído de uma sucessão de pequenos bailados-pantomimas, animados por marchas, loas e cantigas simultaneamente cantadas e dançadas por “pastorinhas” que, divididas em dois cordões, o azul e o encarnado, louvam o nascimento do menino Jesus e a chegada dos três reis magos. Pastoril de Ponta-de-rua, Profano ou de Velho são nomes dados à sua versão cômico-profana. Nele, um personagem com o rosto pintado, portando uma bengala retorcida, cheio de gracejos e danças mugangueiras, fazendo-se acompanhar por um conjunto de “pastoras” mais liberais no quesito indumentária e na maneira de dançar, tirando cocos, marchinhas e cançonetas licensiosas, entretém uma variada plateia noite à dentro. Foi esse Velho Faceta – segundo uns, Constantino Leite Moisakis e segundo outros, Jones Francisco da Silva – que durante vários anos acompanhei em andanças e apresentações. E por conta das imitações que dele fazia vez por outra, ganhei o honorável apelido de Tonheta. Está aí, portanto, a genealogia “profunda” do nome do meu estupendo personagem…
Era para um espetáculo de natureza teatral a ele principalmente dedicado que há muito tempo eu vinha anotando em cadernos ideias, trechos de obras literárias, histórias cômicas e picarescas populares, entremeios de espetáculos populares, situações que presenciava, notícias jornalísticas, etc. Uma espécie de caderno-ideário “tonhetânico” geral através do qual eu ia esboçando uma epopeia-bufônica tendo o industrioso Tonheta como o seu herói-bufão. Esse grande armazém de rascunhos seria o ponto de partida para a criação das esquetes, danças, pantomimas, músicas cantadas e tocadas, etc., que dariam corpo ao(s) espetáculo(s) a ele dedicado(s).
Mas como seria narrada essa epopeia? Qual a forma de apresentá-la? É aí que entram em cena Rosane, Bráulio Tavares e Romero de Andrade Lima. Rosane já desde o espetáculo O Maracatu Misterioso – com o qual viemos para são Paulo – vinha me ajudando tanto como atriz quanto como conselheira artística geral. Bráulio Tavares eu conhecera em Campina Grande quando, integrando o Quinteto Armorial que por lá se fixara, ia eu semanalmente à cidade para ensaiar ou me apresentar com o grupo. Tínhamos uma enorme afinidade artística, sobretudo no campo do cômico, pois assim como eu tinha criado o meu personagem Tonheta, ele tinha também inventado o seu: Trupizupe, o Raio da Silibrina. Enquanto o meu tinha como fonte principal de referência o universo dos palhaços presentes nos espetáculos populares – Mateus, Velhos de Pastoril, emboladores e palhaços circenses – o dele se referenciava sobretudo na rica galeria dos personagens picarescos que inundavam as histórias da literatura de cordel. Romero de Andrade Lima era um artista plástico a quem eu tinha uma enorme admiração. Numa ocasião seu tio, Ariano Suassuna, mostrou-me uns desenhos e pinturas suas que muito me impressionaram.
E foi com essa trinca de ouro que montei o Brincante.





Nascimento do Brincante VI – Dimitri

By Antonio Nóbrega | 5 dezembro 2013 | Sem Comentários

Guardo boas lembranças do mês que passamos em Verscio: do pão matinal da pousada onde ficamos; das peras, ameixas e figos que, dependurados dos galhos que ficavam para fora das cercas e muros das casas, impedíamos que apodrecessem…; dos encontros entre alunos aos domingos à tarde após a exaustiva semana de práticas; dos espetáculos de Dimitri e da Companhia Dimitri; das boas conversas com Alessandro Marchetti, amigo e mestre-professor de Commedia dell’arte.
A rotina diária começava cedo pela manhã e era marcada por aulas e treinos de acrobacia, malabares e funambulismo (andar no arame) e pela montagem de uma obra de Goldoni à maneira da Commedia dell’arte. A Escola contava com bem equipadas salas de treinamento, dois teatros, um agradável refeitório, uma biblioteca, uma videoteca e salas administrativas. Hoje também abriga um “Museu da Palhaçaria”. Fundada por Dimitri e sua mulher Gunda, era a única em toda a região do Ticino.
O que mais me seduzira em Dimitri como artista, fora a sua versatilidade e o modo como soubera canalizá-la para a arte da Palhaçaria. Era mímico – estudara pantomima com Marcel Marceau – cantava e tocava instrumentos de corda e de sopro – clarinetes e saxofones de todos os tamanhos – fazia o que queria no arame e era um excelente acrobata. Na ocasião rodava pelo mundo apresentando três espetáculos que criara e que continuavam em repertório. Três solos através dos quais despejara, em boa medida, muito do que queria dizer pela arte do palhaço. Como conseguira organizar, dar unidade e sentido a todas aquelas habilidades? Essa era a grande pergunta que eu me fazia e que, no fundo, fora a razão pela qual eu tinha inventado aquela jornada até Verscio.
Não foi muito tempo depois que vim perceber que duas grandes forças se aliavam para que ele pudesse realizar aquela façanha: a sua capacidade e engenhosidade criadora e a vigorosa tradição cultural do cômico europeu. Fora dentro dessa tradição cultural, povoada de personagens da Commedia dell’arte, palhaços da comédia circense e mímicos da pantomima teatral e do cinema mudo da primeira metade do século XX, onde o gênio inventivo de Dimitri pode encontrar a matéria-prima através da qual pode construir as esquetes, cenas, entrechos e procedimentos teatrais que inundavam os seus espetáculos.
• • •
Aquela passagem pela Escola e Teatro Dimitri fazia ressurgir em mim um mundo de questões: onde estaria o meu/nosso chão cultural coletivo? De que estaria constituída a nossa brasileira argamassa cultural? Qual a consciência que tínhamos de nossa cultura? Sabemos que não somos, nem cultural nem etnicamente, genuínos ocidentais. Sabemos que índios, negros e ibérico-mediterrâneos – nunca é pouco lembrar – colaboraram fundamentalmente na “substanciação” do nosso massapê étnico-cultural. Mas como trazer essa compreensão à consciência do brasileiro com a força que – penso eu – se faz necessária? Percebi que, embora o meu campo de batalha continuasse sendo o da realização artística, essas perguntas iriam sempre fazer parte do meu itinerário intelectual e que eu sempre me sentiria instigado a tentar respondê-las. A “jornada” Dimitri agudizara a minha percepção do problema cultural brasileiro e me incentivava a levar adiante questões que só com o tempo eu poderia responder.

* * *

Quando deixamos a Escola e Teatro Dimitri nos primeiros dia de agosto, após um mês de rica experiência humana e artística, não sabíamos que seis anos depois algumas daquelas questões estaríamos tentando responder com o espetáculo Brincante.





Nascimento do Brincante V – A máquina do mundo

By Antonio Nóbrega | 25 novembro 2013 | Sem Comentários

Quem leu os meus blogue-textos anteriores já se deu conta de que venho protelando finalizar essa história de como o teatro e o espetáculo Brincante nasceram. No terceiro texto da série eu dizia que numa aula da Denise Stoklos tomei conhecimento de um livro do “clown” suíço, Dimitri. Nessa época eu andava numa crise artística braba – nunca, aliás, deixei de tê-las, para minha sorte…– pois buscava dar espírito e forma ao meu personagem Tonheta. Se naquela época boa parte do seu espírito eu já havia encontrado – a partir do meu encontro com a figura do Mateus dos espetáculos populares – ainda muito havia que encontrar. Abrir aquele livro, portanto, e dentro dele me deparar com fotos e depoimentos de um artista que se especializara na arte da palhaçaria e que se apresentava em teatros do mundo inteiro com os seus espetáculos solos, me dava uma enorme alegria e fascínio. Tomei, então, a decisão de conhecer o tal sujeito e o seu Teatro Scuola Dimitri. Como na época não havia Internet, os caminhos para estabelecer contato eram o postal, o telefônico e o recente fax. Pois bem, foi nessa gradação de comunicação que depois de alguns meses, precisamente no começo de julho de 1986, tomávamos eu e Rosane um avião da Varig em direção à Suíça onde ficava a diminuta vila de Verscio. Me recordo que tivera a “feliz” ideia de levar conosco o material cênico do meu espetáculo O Maracatu Misterioso, pois tencionava apresentá-lo por lá. Problema. Imaginem: embarcar conosco duas caixas (hoje se diz “cases” ) de tamanho médio, desembarcá-las em Zurique, de lá reembarcá-las de trem para Locarno e daí novamente acomodá-las num pequeno trem que nos levaria até Verscio. Com dois agravantes, ainda: nunca tínhamos ido à Europa e Rosane estava no sexto mês da gravidez de Maria Eugênia…Me lembro bem: eu e Rosane, por volta das 23 horas da noite, empurrando pela vielas de Verscio as duas caixas (é verdade que tinham rodinhas…), carregando malas e instrumentos musicais, tentando descobrir a residência do senhor Jean Moncero, o coordenador pedagógico da Scuola com o qual tínhamos contatado. Deve ter tomado um baita susto o senhor Moncero quando nos viu no portão de sua casa gritando “messier Moncerô! messier Moncerô…! Tenho para mim, que por mais que tivéssemos avisado que chegaríamos em Verscio naquela noite, ele não acreditou totalmente quando nos viu. O fato é que ali estávamos – para ele feito vivalmas de outro mundo – perguntando-lhe onde ficava a pousada a qual eu fizera reserva. De um janelão de um alto sobrado, o senhor Moncero perplexo e semi acordado nos indicava o caminho. Ao perguntar-lhe se não poderíamos deixar as nossas caixas na sua casa até a manhã seguinte, ele nos informou que podíamos deixar ali mesmo. Uma resposta que lhe parecia ser absolutamente natural. Mas como? Deixar ali mesmo na rua, na calçada…? Nos entreolhamos eu e Rosane e foi aí que percebemos que caía a primeira ficha dentre as várias que iriam cair naquela desafiadora viagem. Do lugar onde estávamos, víamos não só o rosto e o tronco silhuetados de Moncero, como o coalhado, infinito e misterioso céu de estrelas do verão europeu.

É claro que não me vieram à lembrança os versos do Poeta, mas bem que eles casavam com o que sentíamos:

“E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som dos meus sapatos,

a máquina do mundo se entreabriu.”
(A Máquina do Mundo, Carlos Drummond de Andrade)





Nascimento do Brincante IV – Mestre Antônio Pereira

By Antonio Nóbrega | 18 novembro 2013 | Sem Comentários

Antes, todavia, de chegar em Verscio, como prometi contar, ainda terei de dar um cambalhota para trás nesse relato. Relendo o texto anterior para pegar a “deixa” e seguir para esse, vi que poderia falar um pouco sobre a figura do “velho e famoso brincante popular Capitão Antônio Pereira” a que me referi naquele texto como o dono e diretor do Boi Misterioso de Afogados. Esse “capitão”, de brincante patente, quando o conheci já era octogenário mas ainda “brincava” no Boi. Botava figuras (expressão que em língua de bumba-meu-boi significa “representava personagens e figuras diversas”) e, montado no Cavalo Marinho, comandava o “brinquedo”. Posso dizer que ele foi o meu grande mestre iniciador nas artes do teatro popular brasileiro. Com ele aprendi os toques de percussão da “brincadeira”; as loas e chamadas-de-entrada e saída das figuras, bem como as suas falas e jogo gestual; aprendi a confeccionar as tais figuras – boi, cavalo, morto-carregando-o vivo, ema, pigmeu, babau, etc. – a partir de cipós de jacuipiranga recolhidos nos mangues e que serviam de armação para panos de estopa e lonas velhas que prendíamos nos cipós e as pintávamos com tinta óleo como que esculpindo as figuras. Para essas tarefas cedo pela manhã chegava em sua casa e só pela boca da noite é que ia embora. Morava numa casa pobre – metade de barro, metade de alvenaria –, embora muito bem cuidada e bem arrumadinha por sua mulher d. Maria, “crente” fervorosa. A viela estreita em que a casa ficava, fosse na época das chuvas, me proibia de visitá-lo. O local, denominado de Mustardinha, fazia parte do bairro de Afogados, uma região que, como o nome sugere, era recortada pela presença de manguezais. Sempre que comia em sua casa ele me brindava com uma frase que ainda hoje repito quando os amigos vêm comer na minha: “aqui tem de tudo, só não tem o que está faltando…”
Se o capitão Pereira me trouxe o primeiro entendimento do que era a “brincadeira” do Boi, foi a figura do Mateus Guariba que me despertou a vontade de dançar e atuar comicamente. Foi através dela que me conectei com o universo da dança. Até então nunca tinha me aproximado desse mundo. Mas aquele arsenal de passos, aqueles trejeitos mugangueiros e divertidos do Mateus me seduziam enormemente. Resolvi aprendê-los e até hoje eles fazem parte da minha memória e imaginário corporal.
Mas voltando ao Capitão Pereira, fiquei-lhe tão agradecido pelos ensinamentos que me propiciava que um dia idealizei uma solenidade pública para homenageá-lo. Criei para ele o título de Mestre Supremo e Perpétuo da Brincadeira do Boi e numa tarde de sábado na Casa da Cultura de Recife, com toda pompa e circunstância, eu e os meus amigos integrantes do Boi Castanho Reino do Meio Dia lhe outorgamos o título. Essa titulação foi feita através da entrega de uma comenda, de um pergaminho e de um discurso-texto por mim proferido cujo conteúdo estará em breve nesse blog. Certamente esse foi o único artista brasileiro a receber tal titulação…
Por essa ocasião, Mestre Pereira tinha 88 anos. Ele morreria quatro anos depois, no dia dois de maio de 1981. Morria aos 92 anos . Nesse dia eu completava 29.





Nascimento do Brincante III – Bois e o Mateus

By Antonio Nóbrega | 30 outubro 2013 | Sem Comentários

Como eu dizia, os cantos, as danças, a maneira de representar dos artistas populares me pegavam de tal jeito que logo vi que tinha de desaguar de alguma maneira aquilo que aprendia. Foi por essa razão que criei sucessivamente dois Bois: o da Boa Hora e em seguida o Castanho Reino do Meio Dia. Embora esses grupos de Bumba-meu-boi que idealizei fossem imitações do Boi Misterioso de Afogados do velho e famoso brincante popular Antonio Pereira, foi através deles que eu comecei a exercitar-me na função de ator e criador de espetáculos.
Juntei moças e rapazes amigos e da minha idade e começamos a nos reunir para aprender as loas, os toques instrumentais e o jogo teatral das diversas figuras. Tenho para mim que gostavam da ideia de tomar parte nesses “brinquedos” mais pelo espírito da festa e encontro social do que propriamente pelo exercício teatral. Eu é que, secretamente, encarava aqueles Bois como coisa muito séria…
Neles, além de organizá-los e dirigi-los ainda atuava na figura do Mateus. Para quem não sabe, Mateus é o nome dado a um misto de palhaço e bufão presente na maioria dos espetáculos populares. É uma figura de uma comicidade sobretudo corporal e gestual, contadora de facécias e tiradora de chistes. Pois bem, me identifiquei danadamente com ela. É por essa razão que a representava nos dois Bois que criei e nos espetáculos teatrais que posteriormente realizei – Figural, Brincante e Segundas Histórias – ela foi recriada com o nome de Tonheta. Para essa recriação, além de, naturalmente, me aprofundar no cômico popular, procurando assimilar e mastigar o seu amplo universo, me interessei também em estudar e aprender os procedimentos dos cômicos do cinema mudo como Chaplin e Buster Keaton, dos chanchadeiros brasileiros Oscarito, Grande Otelo e Zé Trindade, dos cômicos das comédias cinematográficas Cantinflas e Totó. Além do que, interessei-me também pelo universo do Arlequim da Comedia dell’arte e da Palhaçaria em geral estudando a vida e a arte de palhaços como Grock, os Irmão Fratellini e Dimitri, um “clown” que tive a felicidade de tomar conhecimento numa aula de mímica dada por Denise Stoklos. Foi ela que mostrou-me o seu livro Album Dimitri. O livro informava também que ele dirigia com sua mulher, Gunda, um teatro-escola em Verscio, na parte italiana da Suiça. O resultado desse conhecimento é que encasquetei em conhecê-lo e fazer um curso na sua escola. Para contar como isso aconteceu vou ter que novamente adiar o fim desse relato brincântico.
No próximo texto contarei as peripécias que tivemos de fazer para, numa noite de 1990, bater eu e Rosane com os costados em Verscio.




ARQUIVO